<em>A questão agrária</em>

Pedro Campos
O artigo 105 de Constituição venezuelana de 1961, a dos tempos neoliberais, começava assim: «O regime latifundiário é contrário ao interesse social», e acrescentava que «A lei disporá o conducente à sua eliminação, e estabelecerá normas encaminhadas a dotar de terra os camponeses e trabalhadores rurais que precisem delas...». Esta era a lei, que não a prática....
O artigo 307 da Constituição da República Bolivariana de Venezuela (1999) começa deste jeito: «O regime latifundiário é contrário ao interesse social». Como se poder ver, 38 anos depois, o texto inicial é exactamente o mesmo. A seguir, a Lei de 1999 dá um salto qualitativo e afirma que «disporá o conducente em matéria tributária para gravar as terras ociosas e estabelecerá as medidas necessárias para a sua transformação em unidade económicas produtivas...». Esta é a lei, e está a ser aplicada...
Ambas as constituições consideram o latifúndio «contrário ao interesse social». A diferença está em que a de 1999 começa a ser aplicada, e cumprir a lei é, para os meios de comunicação, uma excelente oportunidade para que avancem a ideia de que se vai atacar a propriedade privada, de que quem tiver dois carros vai ficar sem um deles ou de que quem tiver uma casa grande vai ter de ceder uma parte da mesma para que a ocupe outra família!
Não há muita gente para acreditar neste anticomunismo primário, mas existem suficientes média com recursos, financeiros e de outra natureza, para envenenar alguns espíritos profundamente reaccionários e ignorantes e para criar, especialmente fora do país, uma imagem distorcida do que se está a passar no campo da reforma agrária e do problema das terras ociosas.

Titularidade: um problema de séculos

A Venezuela tem perto de 91 milhões e 600 mil hectares de terras, das quais quase metade são zonas protegidas. Segundo funcionários especializados do Instituto Agrário Nacional, 14 milhões são baldios, 8 milhões e 600 mil estão registadas como propriedade do Instituto Nacional de Terras e 24 milhões pertencem, alegadamente, a particulares... 80% dos quais têm títulos cuja origem não está totalmente clara. Alguns vêm ainda dos tempos da coroa espanhola, outros resultam de conquistas militares, há os que são produto de ventas sucessivas, muitas vezes – tudo indica que assim é – com vazio documental, e quando isto sucede, esses terrenos devem passar automaticamente para a posse do Estado.
Em 1810, quando se dá a Independência, grande parte dos títulos foram parar à Espanha e perderam-se. Não se sabia nem quais eram os terrenos baldios, nem quantos foram negociados pela Coroa, nem quais tinham cumprido com as bulas papais ou com as cédulas reais. São, portanto, poucos os que têm uma tradição legal clara. E noutros casos os donos morreram sem deixar herdeiros pelo que essas terras passaram a ser propriedade da nação.
Nesta situação devem estar perto de 80% das terras. Mas há algo ainda pior.
Calcula-se que existe na Venezuela um total de 400 a 500 latifúndios por extensão, o que equivale a mais de cinco milhões de hectares. Os latifúndios por função são ainda mais. De facto, os especialistas estimam que não há no país mais de seis milhões de hectares produtivos. Um só exemplo: a herdade La Vaca tem uma extensão de 33 mil de
hectares, dos quais menos de 200 estão em produção.
No meio de acusações histéricas que apresentam a luta contra o latifúndio como um assalto à propriedade privada, a visão do governo bolivariano é que se uma pessoa tem um latifúndio de 500 hectares e só 200 estão a produzir, fica com eles – e talvez com outros 100 – mas o resto deverá ser entregue a quem as trabalhe.
As autoridades vão mais longe. Se os títulos de propriedade são precários mas as terras estão a ser trabalhadas, não serão tocadas, mas haverá, contudo, que ver qual é a extensão produtiva, nível de rendimento e tipo de solo, porque há quem tenha terras e não faça rotação das culturas nem as deixe descansar, do mesmo modo que há que tenha comprado 50 hectares e de repente aparece dono de 501 mil. E dá-se igualmente o caso de quem compra terras e não trabalha as suas mas sim as baldias.
Muitos críticos do processo atacam a distribuição de terras dizendo que os camponeses quando as recebem vendem-nas posteriormente ou perdem-nas numa luta de galos. A isto respondem as autoridades que a solução não é só entregar as terras a quem as sabe trabalhar, mas criar igualmente condições de vida para que os camponeses se sintam ligados a elas. Isso passa, por exemplo, por criar infra-estruturas vizinhas, tais como postos médicos, meios de transporte para chegar às escolas mais próximas, para além de assessoria técnica e fornecimentos de insumos e materiais de trabalho.
Assim se está a fazer, com todas as dificuldades que implica este processo, ao longo do qual já foram assassinados várias dezenas de dirigentes agrários.


Mais artigos de: Internacional

Tráfico no Haiti

Cerca de 30 mil crianças haitianas são traficadas anualmente para a República Dominicana para abastecerem a prostituição infantil e o mercado de trabalho, denunciaram domingo a Unicef e a Organização dos Estados Americanos.Crianças e adolescentes são usados por gangues também no Haiti, torturados, sequestrados, abusados...

A mundialização da tortura

A CIA mantêm prisões secretas em oito países europeus, na Tailândia e no Afeganistão, revelou o Washington Post citando documentos, fontes oficiais e a Humans Right Watch.

ALCA derrotada em Mar del Plata

O presidente norte-americano, George W. Bush, foi a Mar del Plata tentar ressuscitar as negociações da ALCA, paralisadas há 20 meses, mas a estância turística argentina arrisca passar à história como a tumba do projecto de modelo único que os EUA pretendem impor.Com a arrogância do costume, Bush deu como adquirido que a...

Bloqueio a Cuba rejeitado na ONU

A resolução «Necessidade de por fim ao bloqueio económico, comercial e financeiro imposto pelos EUA contra Cuba» foi anteontem aprovada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque.Dos 191 países representados, apenas os EUA, Israel, Palau e as Ilhas Marshal votaram contra, tendo o documento recebido o apoio de...